Museu de Novidades
Museu de Novidades, a nova série de obras de Marcelo Tinoco, é um quase-tudo. A transparência formal da fotografia é contrariada pelo componente pictórico que subjaz na potência e no esplendor das imagens. O quase define o apagamento de fronteiras entre fotografia, pintura e desenho, exponenciando e impelindo a plasticidade figurativa para uma realidade alternativa que não é só imagética, mas também relativa aos procedimentos e conceitos.
O artista sempre iniciou o processo de criação a partir de seu extensivo banco de imagens, fotografias documentais coletadas especialmente em viagens: paisagens, castelos, o mundo rural, monumentos, afrescos, obras de arte, e a natureza – árvores com as mais variadas e frondosas copas e de diferentes de espécies. Para a exposição Museu de Novidades, registra principalmente jardins tropicais, referências como Burle Marx, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e Royal Botanic Garden, o famoso Kew Garden, em Londres, o qual abriga uma estufa tropical com lagos de vitórias-régias gigantes e flores de lótus. Com um razoável corpusde data disponível, Tinoco usa as possibilidades das práticas digitais para começar sua fabulação artística. Planos são formados pela junção e justaposição em uma colagem de fragmentos das imagens clicada e recortadas. Esses samplesirão compor o grande painel ficcional da paisagem final. E a ficcionalização ganha mistério e indeterminação espacial/temporal por meio do uso da cor. Determinada a paleta que será usada – neste caso, cores quentes e frias em tons baixos – todas as obras são trabalhadas dentro deste espectro, o que resulta não só na unidade cromática na série, como também numa visualidade um tanto irreal. Com um pincel digital, Tinoco desenha, redesenha, contorna, pinta, ilumina, adiciona elementos, criando, por meio dessa mistura lúdica, uma nova paisagem imaginária de grande impacto visual.Outro procedimento que dá unidade ao conjunto é o uso de um mesmo sampleem diferentes obras, assim as vitórias-régias migram da Oféliae da Vênuspara as paisagens e as palmeiras que aparecem no Retrato de Mada Primavesie se insinuam nas obras Burlemarxcromia I e II. 
A apropriação e a intertextualidade são procedimentos já estabelecidos nas práticas contemporâneas. A apropriação tem um histórico que remete ao ato duchampiano relativo aos ready-mades. A intertextualidade como modalidade artística é mais recente, aparece visivelmente nos anos 1970 e advém da reprodutibilidade das imagens pela fotografia e pela acessibilidade destas pelos meios de comunicação. Basta recuperar no tempo presente textos distantes e já ocorridos para torná-los atuais e inseridos no fluxo da vida. A intertextualidade baseia-se numa relação dialógica entre passado e presente que permite a continuidade da arte. Por um outro viés, Warburg chamaria isso de Nachlebenou um após-vida, uma dimensão trans-histórica das imagens.
Por isso, História da Arte é hoje um imenso arquivo para pesquisas no campo da ressignicação. Tinoco ressalta que parte de um sentimento afetivo ao se apropriar de temas e figuras que representam padrões de beleza na Arte e deslocando-os para seus jardins surreais. Beleza é um conceito relativo. Modelos de beleza eternizados nas obras de arte vão se alterando de acordo com novos valores com o passar do tempo. Embora possamos admirar a Beleza etérea e idealizada da Vênusde Botticelli nos deslumbramos com o penteado mais moderno da Vênusde Marcelo Tinoco e seu corpo alongado próximo da beleza contemporânea das Barbies. Há, sim, uma semelhança que remete ao artista renascentista, porém sutis transformações ocorrem. Esse jogo de narração discursiva nos deleita. As fotos recriadas nos afetam exatamente porque há uma empatia. Figuras conhecidas ambientadas em circunstâncias extraordinárias e inesperadas produzem um prazer no reconhecimento destas imagens que fazem parte de uma memória coletiva do universo artístico. Graças à permissividade do mundo digital, os códigos podem ser alterados: Ofélia, de Millais, e a Vênus,de Botticelli, podem agora flutuar num outro ambiente; a Sevilhana, de Diego Lopez Garcia, sai de seu pátio interno para repousar num espaço aberto. Tinoco, parafraseando Benozzo Gozzoli, opera uma remixagem no afresco, da parede leste, da famosa série dos Reis Magos, na Capela do Palácio Medici-Riccardi, em Florença. Em Caminho para Montalcino, vemos Lorenzo, o Magnífico cavalgando numa paisagem geometrizada e monocromática em vez da estrada naturalista e acidentada da obra de Gozzoli. O artista também edita as personagens: no afresco original, Lorenzo é seguido pelo pai Piero II e pelo avô Cozimo, mas Tinoco elege substituir os dois personagens pelo cavaleiro barbudo do afresco da parede sul cuja postura é muito mais digna e elegante do que a dos Medici.
O caráter polifônico de construção conduz a peculiaridades da poética de Tinoco. O enfoque realista, linear e bressoniano da fotografia é inadequado para as fotos híbridas de Tinoco. O “momento decisivo” é substituído pelas múltiplas possibilidades da aventura não pré-determinada, um sistema aberto em que predomina a relação do artista com a Cultura – uma cosmovisão carnavalesca. Para Bakhtin, a cosmovisão carnavalesca “é dotada de uma poderosa força vivificante e transformadora e de uma vitalidade indestrutível” justo porque não se atém a uma racionalidade e a um dogmatismo, mas revive a construção na experimentação e na pluralidade de vozes.
No Museu de Novidadesas obras são formas sincréticas de um livre contato entre o antigo e o contemporâneo, o ideal e o real, o sagrado e a profanação das normas, um mundo eterno e às avessas.
Nancy Betts