Entre estilhaços e aparições
Moinhos, rodas-gigantes, paredões de prédios. Ciprestes, árvores de galhos quebradiços e sem folhagem, exuberantes exemplares de Mata Atlântica. Perdigueiros, gansos, araras, seriemas, porcos, leões, zebras, girafas. Crianças a jogar bola no cemitério, corredores desviando da vegetação elevada de um parque no ‘1º andar’. O universo presente em Histórias Naturaiscertamente não é tão lógico e tem no espírito da colagem um de seus principais motores.
No entanto, o artista paulistano Marcelo Tinoco assina um tipo atual de fotomontagem, lançando mão dos efeitos das ferramentas de pós-produção agora correntes. Afasta-se da carga política com a qual as vanguardas russas tanto apreciaram tal formato de veiculação, por exemplo, e não abraça tão literalmente o ambiente onírico e fantástico adorado pelo Dada e pelo surrealismo, que utilizaram à exaustão essa linguagem.
De todo modo, o espírito da coleta, seleção, justaposição e exposição de fragmentos de uma realidade cindida, mesmo que aparentemente em transcurso normal, plácido, e que gera outros significados e sentidos, permanece. É uma espécie de lance jocoso, satírico do artista, que a priori exibe universos com um bric a bracde certa forma estranho, mas sustentado num estado aparente de harmonia. Contudo, um certo ruído é perceptível. A figura central de Loch – Stirling, Escócia, 2012tem algo de deslocado no tempo. A família na carroça de Tolstoi – Oslo, Noruega, 2014tampouco é marcante pela atualidade. E o clima do panorama das crianças com seus juguetesem Renascimento – Vulcão Osorno, Chile, 2012se aproxima mais do enredo de James e A Outra Volta do Parafusodo que do gênero pastoral.
“Do mesmo modo que a imagem fotográfica, em contraposição à caricatura desenhada, inspira a fotomontagem política por sua maior ‘realidade’, assim também pode conseguir perturbar nossa percepção normal do mundo e criar imagens maravilhosas. Mediante a justaposição de elementos entre si de natureza estranha criam-se paisagens alucinatórias; quando os objetos cotidianos se trasladam a um novo contexto resultam enigmáticos”1, argumenta a teórica Dawn Ades. Tinoco, um artista do nosso tempo, cria mosaicos contemporâneos justamente perturbadores porque as relações e os elos entre elementos e mundos distintos são de contornos borrados e nada claros _ tudo é equalizado segundo uma temperatura de cor sem grandes rompantes, uma composição plástico-visual familiar, um grande formato que deseja ser verista. O horror e a ruína, existentes, estão no extraplano. De certo modo, parecem ser vislumbrados por alguns, como o leão de olhar fixo de High Line 3 – New York, 2012, ou estar por entre as brumas da paisagem montanhosa de Renascimento....
A “realidade mista”, o hibridismo das mídias, a contaminação de uma fotografia construída, são todos vetores poéticos, em voga na contemporaneidade, com os quais Tinoco lida habilmente. “Mas o que era verdade em uma cultura do livro não é mais na cultura das telas: aqui, os contrários coexistem. E essa cultura produziu, naturalmente, uma imagem nem totalmente real, nem totalmente ficcional: ‘realidade mista’”2, escreve o pesquisador Serge Tisseron. “Permanece difícil encontrar uma palavra capaz de agrupar tais experiências, algo que nos explique efetivamente aquilo que se chamou de fotografia contemporânea. Esboçaram-se algumas tentativas, sempre insuficientes e provisórias: falou-se numa fotografia construída, híbrida, contaminada”3, afirma Ronaldo Entler. “Mas, como já sugerimos, por trás dessa diversidade há em comum uma postura, um pensamento, um discurso.”
Com Histórias Naturais, Marcelo Tinoco, consciente das contradições dos nossos dias, constrói pouco a pouco uma obra que realça os paradoxos e a instabilidade do fotográfico (mais que a fotografia), traça ligações com a história da pintura (nisso, os céus dos panoramas são paradigmáticos) e não deixa de guardar conexões com os lugares distópicos das narrativas sci-filiterárias e cinematográficas mais elaboradas _ como não pensar que o cenário de High Line 3já não pertenceria à pós-história?
Mario Gioia, junho de 2014