Panoramas remixados
“Uma foto é um fragmento _ um relance. Acumulamos relances, fragmentos. Todos nós estocamos mentalmente centenas de imagens fotográficas, que podem ser lembradas de modo instantâneo. Todas as fotos aspiram à condição de ser memoráveis _ ou seja, inesquecíveis.”1Susan Sontag destaca, em análise precisa, alguns dos eixos principais da fotografia contemporânea: o fragmento, a memória, a busca da identidade. O artista paulistano Marcelo Tinoco não deixa de se pautar por tais vetores, bastante visíveis nas séries Timelesse Histórias Naturais, que apresenta no CCSP (Centro Cultural São Paulo).
Solapando a tradição documental, fotojornalística e bressoniana, ainda exageradamente exitosa no circuito brasileiro, Tinoco embaralha noções, que poderiam ser estanques, de captação, catalogação e exibição de imagens. Sua produção faz coexistir procedimentos da pintura, da colagem e do fotográfico (este entendido como algo que extrapola a fotografia emoldurada numa parede e que se situa num campo expandido da linguagem).
Relembrando o argumento de Sontag, é essencial o fragmento na poética de Tinoco. As fotografias de grandes dimensões _ a maioria com tamanho médio de 1 m x 1,50 m _ são espécies de panoramas que amalgamam uma miríade de elementos visuais. Cada construção fotográfica exposta ao observador possui centenas de operações do tipo copy/pastee outras tão típicas dos programas de pós-produção. Tem a ver com o conceito de “realidade mista” trazido por Serge Tisseron: “A fotografia propõe uma realidade mista desde sua origem, porque nela realidade e ficção estão de tal modo imbricadas que é impossível separá-las”
Esse dado ficcional, ligado à criação de uma narrativa autoral ancorada em registros de sedutora plasticidade, seria conceitualmente manco caso Tinoco se respaldasse apenas nas práticas e técnicas que ferramentas como o Photoshop lhe dá. Contudo, o artista joga com ideias como natureza e artifício, construção e pós-produção, por exemplo, e realiza experimentos _ “pinceladas”, como gosta de frisar _ artesanais e desenvolvidos de forma “amadora” por ele mesmo, a fim de evidenciar verdejantes gramados e céus azulados.
Tal metodologia é muito visível numa obra como Domingo(2011), na qual um regato holandês, bem plácido, e suas margens, como casas de regulares geometria e colorido nas cercanias, são tomados por dezenas de bichos a conviver harmonicamente com visitantes de variadas classes sociais e “tribos”. O firmamento, com nuvens cuidadosamente distribuídas, remete a Ruysdael (1602-1670). Já Constable (1776-1837) e Rousseau (1844-1910) são fortes chaves na composição “terrena” do trabalho. Assim, Tinoco confere ao fotográfico o status do pictórico, por meio de um bric a bractecnológico com fundamento na colagem.
Cabe ressaltar que nomes potentes da fotografia contemporânea também se valem de estratégias parecidas em suas produções. Neste sentido, a obra da alemã Loretta Lux tem muito a traçar elos com a de Tinoco. “Vejo-me como pintora que usa a câmera como ferramenta. [...] Se eu tivesse acesso apenas a filme fotográfico, não teria começado a trabalhar com fotografia. [...] Gosto de ter mais controle sobre a imagem, em lugar de depender daquilo que esteja em frente da câmera num momento específico”3, afirma ela.
De modo concomitante à lida com o fragmento e com a história da arte, memória e identidade se entrecruzam por meio da presença dos personagens que preenchem a objetiva (e a tela do computador) de Tinoco. A calmaria aparente dos esportistas de High Line 1(2011), em Nova York, e dos turistas clicando obsessivamente em Fotografando Praga(2011), por exemplo, não é tão estridente quanto os protagonistas de To Canaletto(2012), Castelo São Jorge, Pentecostes(2012) e Soldados de Chumbo(2012). Nessas peças, tais figuras são retratadas em diferentes paisagens, em Veneza, Portugal e República Tcheca. O apego ao passado, em declarada atitude nostálgica _ via vestuários “de época”, reencenações de festividades religiosas e protocolos oficiais-militares que perduram _, gera, ao passar uma inicial perspectiva de ‘originalidade’ nos dias que correm, um mal-estar que mais se aproxima da melancolia do que de celebradas identidade e memória a defender. A não resolução de conflitos do hoje e uma incompletude que não se esvai se impõem. Não há pacificação dos espíritos na obra de Marcelo Tinoco. “[...] De uma coisa podemos ter certeza a respeito desse modo caracteristicamente moderno de experimentar qualquer coisa: a visão e a acumulação de fragmentos de visão nunca podem ser completadas. Não existe uma foto final.”
Mario Gioia